Enfiei a cabeça pela porta do puxadinho para checar se minha avó, Albina, precisava de ajuda na lavanderia. Sem se dar conta da minha presença, ela retirava apressada alguns jeans dobrados de cima da máquina de lavar que sacolejava, em funcionamento. A pobre máquina, coitada, é mais velha do que eu. Funciona bem que é uma beleza, mas, quando imagino todas as ombreiras, calças de cós alto e mangas princesa que ela lavou nos anos 80, não posso deixar de ter pena.
Terminado o trabalho da velha combatente, vovó abriu a tampa, espiou o resultado, não se deu por satisfeita e fez a máquina recomeçar. Minha ajuda seria inútil.
É uma senhora das mais inseguras, a minha avó. Fico alvoroçada com o número de vezes que ela precisa checar se pode, se cabe, se está benfeito, se não vai incomodar, se todos concordam, se ninguém tem outra ideia, se vale mesmo à pena. Ela diz que é uma questão de educação e precaução, mas para mim é mesmo pura esquisitice.
Fui criada por Vó Bina desde sempre. Pai eu nunca tive e minha mãe morreu quando nasci. Nos tempos de infância, sempre que eu contava para alguém esse fato, recebia olhares de pena e palavras de condolência. Não via razão nenhuma para isso, se alguém tinha de receber um abraço, era a minha avó, que perdera uma filha querida, não eu, que não perdera ninguém conhecido. Nem a minha irmã, Clara, dois anos mais velha do que eu, tinha razão para fazer chororô, mas ela jurava que se lembrava da nossa mãe e que sentia saudades. Vai saber.
Por ser “desaforada” e “inoportuna”, eu tomava uns tabefes costumeiros da Dona Bina. Sempre fui meio intempestiva. Quando alguém adulto, com a intenção de me censurar, dizia: “sua mãe não te deu educação, mocinha?”, eu olhava com a maior cara de deboche e dizia “não” – o que não era mentira.
Não me entenda mal. É claro que gostaria de tê-la conhecido. Guardo na memória com carinho os detalhes da personalidade e da fisionomia dela que eu ouvi em histórias ou vi em fotografias. Tenho o mesmo sentimento em relação ao meu avô Antônio, que também não conheci. E quando quero saber de algo que ainda não sei sobre os dois, investigo.
Tive uma educação das boas nas mãos da Vó Bina. No entanto, pouco herdei de sua personalidade rigorosa e preocupada. De regrado, só tenho a sonoridade do meu nome. Fui batizada como Marina Albina Albernaz. Final com final, começo com começo. Tudo combinando. Um horror. Embora a autora dessa primorosa obra poética que é o meu nome jure que foi tudo absolutamente sem querer.
Depois de deixar o puxadinho e perceber que nada havia em casa que precisasse ser feito por mim, sentei no degrau que dá para o jardim e deixei minha mente entrar naquele limbo da imaginação, que só o tédio propicia.
Não sei se é pela minha intempestividade, pela minha falta de escrúpulos ou se pela presença remota da morte na minha vida, mas, quase todas as vezes em que entro nesse limbo imaginativo, conjuro a mesma imagem: a Morte. Nunca ninguém amado por mim morreu. Minha mãe e meu avô primeiro se foram e só depois descobri que poderia e deveria amá-los.
Talvez para tentar imitar o sentimento de perda ou, melhor ainda, para brincar de resolver os impasses práticos do fim da vida de alguém, mato, na imaginação, quase todo mundo que eu conheço, das mais variadas formas possíveis. Às vezes apenas inflijo uma doença horrível, sem morte no final. Mas só às vezes, porque prefiro o desfecho de sempre.
O meu próprio desfecho também tem vez. Morro jovem, morro velha, morro numa infância já ida – pela qual, é mais do que evidente, passei intacta, vivinha da silva. Morro e distribuo bens. Minhas joias ficam para um, os livros e discos para outro – já as roupas, acho que é melhor doar tudo, a não ser que alguém reclame alguma peça.
Depois tem o drama do decurso: Se a morte é lenta, o drama é grande. Se é veloz, o drama é ainda pior, porque daí não dá nem tempo de planejar o destino dos bens. Na vida real, ou melhor, na morte real, acho que prefiro o segundo modo, mas para a imaginação e para a literatura cabe mais o primeiro. Porque dá mais argumento para a trama e isso aqui é um romance e não um conto.
Sendo lento, o processo varia: Às vezes recebo meus familiares, amigos e antigos amores para visitas de despedida, cheias de metáforas e verdades nunca ditas. Antigos amores: tá aí gente que eu acho que só apareceria para me ver se tivesse certeza de que seria a última vez.
Às vezes imagino longas cartas de adeus. Uma rancorosa ao meu primeiro amor, outra verborrágica àquela professora arrogante que disse que eu deveria cuidar para não falar mais do que o necessário. Gosto de ficar escrevendo as cartas na minha cabeça. Passo horas nisso. É um jogo sujo que não dá brecha para intervenções e diálogos já que, geralmente, na minha imaginação, elas só são lidas depois que eu já parti dessa para uma melhor e, mesmo que alguém queira contestar aquilo que escrevi, pouca coisa poderá ser feita a respeito.
A verdade é que dá pra morrer de tudo quanto é jeito e, na vida real, ou melhor, na morte real, a gente não escolhe qual é o jeito que vai ser. Vai ver é por isso que eu imagino. Com sorte, supondo de tudo, eu bato as botas de uma forma para a qual já me preparei! Bobagem. Imagino mesmo é porque não dá pra proibir o pensamento de vir. E nisso é que se assemelham essas duas, a morte e a imaginação. Ninguém as controla nem sabe ao certo por que é que elas vêm. Mas que as safadas vêm, vêm, e delas não há quem possa se esconder.